CONTO
“A HORA E VEZ DE AUGUSTO MATRAGA” – GUIMARÃES ROSA
Observação:
“A hora e vez de Augusto Matraga” é um conto longo, por isso pode ser
considerado uma novela. A crítica oscila entre essas duas designações,
usando-as indiferentemente. Talvez seja conveniente aplicar ao texto a
designação de estória, termo consagrado por Guimarães Rosa para descrever
qualquer narrativa em prosa.
1. Introdução
O
conto “A hora e a vez de Augusto Matraga” faz parte do livro “Sagarana” que é
uma coletânea de contos, nove no total. Todos os textos apresentam a tendência
de Guimarães Rosa à pesquisa permanente da linguagem regional, mantendo-se
ligados ao instrumentalismo. O livro principia por uma epígrafe, extraída de
uma quadra de desafio, que sintetiza os elementos centrais da obra: Minas Gerais, sertão, bois, vaqueiros e jagunços, o bem e o mal:
“Lá
em cima daquela serra,
passa
boi, passa boiada,
passa
gente ruim e boa,
passa
a minha namorada.”
Em
sua primeira versão, os contos de “Sagarana” foram escritos em 1937 e
submetidos a um concurso literário (o Prêmio Graça Aranha, instituído pela
Editora José Olympio), mas não obtiveram premiação, apesar de Graciliano Ramos,
membro do júri, ter advogado para o livro de Rosa (sob o pseudônimo de Viator)
o primeiro lugar (ficou em segundo, perdendo para “Maria Perigosa”, de Luís
Jardim).
Com
o tempo, Guimarães Rosa foi “enxugando” o livro, até a versão que veio à luz em
1946, reduzindo-a das 500 páginas originais para cerca de 300, na versão
definitiva.
O
título do livro, “Sagarana”, remete-nos a um dos processos de invenção de
palavras mais característicos de Rosa – o hibridismo. “Saga” é radical de
origem germânica e significa “canto heroico”, “lenda”; “rana” vem da língua
indígena e quer dizer “à maneira de”, “espécie de” ou “que exprime semelhança”.
Assim, “Sagarana” significa algo como “próximo a uma saga”
As
histórias desembocam sempre numa alegoria e o desenrolar dos fatos prende-se a
um sentido ou moral, à maneira das fábulas. As epígrafes que encabeçam cada
conto condensam sugestivamente a narrativa e são tomadas da tradição mineira,
dos provérbios e cantigas do sertão. O autor combina e recombina habilmente as informações
do meio, confundindo lugares e paisagens, mesclando o real, o imaginário e o
lendário em sua obra.
2.
Autor
Guimarães Rosa situa-se na 3ª
fase do Modernismo brasileiro, chamada Neomodernismo ou Geração de 45. Ao lado
de Clarice Lispector, ele rompeu com os esquemas narrativos dos anos 30 e
instaurou um novo processo ficcional, baseado na estilização inventiva de dados
regionais e na constante pesquisa do instrumento que lhe serve de base, a
linguagem. Por essas razões, Guimarães Rosa pode ser considerado um
instrumentalista. Da mesma geração, o seu correspondente formal e temático na
poesia é João Cabral de Melo Neto.
Os contos e romances escritos por Guimarães Rosa
ambientam-se quase todos no chamado sertão brasileiro e ao observá-lo,
ele sobrepõe uma forte camada de matéria pensante e problematizadora. A sua
obra destaca-se, sobretudo, pelas inovações de linguagem, sendo marcada pela
influência de falares populares e regionais que, somados à erudição do autor,
permitiu a criação de inúmeros vocábulos a partir de arcaísmos e palavras
populares, invenções e intervenções semânticas e sintáticas. Por conta disso,
tornou-se o escritor de maior importância e prestígio da literatura brasileira
no século XX.
Realismo mágico, regionalismo,
liberdade de invenções linguísticas e neologismos são algumas das
características fundamentais da literatura de Guimarães Rosa,
mas não as suficientes para explicar seu sucesso. Guimarães Rosa prova o quão
importante é ter a linguagem a serviço da temática e vice-versa, uma potencializando
a outra. Nesse sentido, o escritor mineiro inaugura uma metamorfose no
regionalismo brasileiro que o traria de novo ao centro da ficção brasileira.
Nessa
perspectiva, as estórias de Guimarães expressam uma visão metafísica da
existência, porque todas, de alguma forma, comportam a crença num bem
verdadeiro e superior. Com efeito, no pensamento geral das estórias de
“Sagarana” há uma constante investigação filosófica, a qual não raro, se
converte em contemplação mística do universo.
Guimarães
Rosa também é incluído no cânone internacional a partir do boom da literatura latino-americana
pós-1950. O romance entrara em decadência nos Estados Unidos (onde à época era
vitrine da própria arte literária, concorrendo apenas com o cinema),
especialmente após a morte de Céline (1951), Thomas Mann (1955), Albert Camus
(1960), Hemingway (1961), Faulkner (1962). E, a partir
de “Cem anos de solidão” (1967),
do colombiano Gabriel
García Márquez, a ficção latino-americana torna-se a
representação de uma vitalidade artística e de uma capacidade de invenção
ficcional que pareciam, naquele momento, perdidas para sempre. São desse
período os imortais Mario
Vargas Llosa (Peru), Carlos Fuentes (México), Julio Cortázar (Argentina), Juan Rulfo (México), Alejo Carpentier (Cuba) e Angel Ramá (Uruguai).
3.
Estilo:
regionalismo universalizante e invenção linguística
A
obra “Sagarana”, na qual se encontra o conto “A hora e a vez de Augusto
Matraga”, não apenas está inserida nas perspectivas instrumentalistas
(linguagem como instrumento constante de pesquisas), bem como é uma das obras
iniciadoras da terceira fase modernista. O conto em questão aponta para a
tendência criada por Guimarães Rosa do regionalismo universalizante, em virtude
de sua capacidade de refletir sobre tópicas consagradas pela tradição da
literatura mundial, a partir do pitoresco regional.
“Sagarana”
é um livro absolutamente novo com relação ao passado literário brasileiro e uma
obra meio envelhecida com relação aos outros livros subsequentes de Guimarães
Rosa. Por ocasião de sua publicação, Álvaro Lins chamou atenção para a
organicidade com que o documentário regional se fundia com a ficção do livro.
Algumas
minúcias, como vários nomes para determinada personagem, são comuníssimas nos
textos do livro. Tais requintes formais decorrem da estilização da linguagem
oral, que, às vezes, gera enunciados dificilmente admissíveis pela lógica
gramatical, mas que se entendem perfeitamente como vivacidades da expressão
oral.
Guimarães
Rosa cria neologismos em “Sagarana”, utilizando-se de palavras formadas por derivações
sufixal, prefixal, parassintética e também por abreviação, composição
aglutinada e composição justaposta. A obra é repleta de neologismos que se
sobressaem em composições e derivações novas, além “de novos tipos de
construção frasal”, ditos "neologismos sintáticos”, segundo Mattoso
Câmara.
A
importância desse grande autor na literatura brasileira advém justamente dessa
sua invenção linguística. Desde o início, notou-se em sua ficção uma radical
contestação da linguagem convencional e o propósito de revolucionar a expressão
literária no Brasil. Sua invenção e revolução abrangem o nível semântico
(significado), o sintático (combinação) e o fonológico (som). Quer dizer: cria
palavras, descobre associações imprevistas entre elas e reproduz ruídos da natureza
ainda não registrados antes dele. E isso tudo se deve ao fato de que a matéria
de sua ficção é falada pelos jagunços ou vaqueiros do sertão mineiro. Rosa
escreve. Mas quem fala são eles, os narradores. Por isso seus textos se acham
carregados de modismos e singularidades de um falar que soa ao homem urbano
como poesia em prosa ou prosa poética.
Algumas
figuras de linguagem, tais como metáforas, anacoluto e silepse têm também grande
destaque. Além disso, o autor faz uso de recursos melopeicos, que são únicos em
sua obra. Como disse Guimarães Rosa, “as palavras têm canto e plumagem” (Borba,
1946), e, por isso mesmo, cada uma delas leva a significados diversos, ainda
que essa diversidade possa ser muito sutil e só apreendida em um exercício de
interpretação. Com efeito, Guimarães apela para os aspectos auditivos (“canto”)
e visuais (“plumagem”), fazendo um verdadeiro arranjo sonoro com as palavras.
4.
Tempo
e espaço
O
tempo da narrativa está mais voltado ao psicológico, ou seja, indeterminado. O
espaço é Minas Gerais, mais especificadamente o norte de Minas Gerais,
destacando-se nomes de vilarejos (Rala-Coco, Murici, Pindaíbas, Tombador) e
lugares do sertão (rios, serras etc).
Em
“Sagarana”, a paisagem assume uma relevância decisiva, porque o autor vê o
mundo dos homens como uma espécie de extensão do mundo natural. Na maioria dos
contos, os bichos exercem grande importância nas estórias do livro. Por essa
razão, não se deve desprezar nenhuma das inúmeras referências feitas a eles.
Há
no livro também uma infinidade de paisagens que tem como função impressionar
sensorialmente o leitor, isto é, saturá-lo de informação, fornecendo-lhe tantos
pormenores quantos são necessários para causar a ilusão da tridimensionalidade
do mundo. Tais descrições se fazem acompanhar de movimento e energia. Baseia-se
no processo da enumeração exaustiva, às vezes tão longas e reiterativas que
parecem esgotar todos os ângulos da realidade inventada.
5.
Foco
narrativo
O
conto é narrado em terceira pessoa. O narrador é onisciente, penetrando nos
pensamentos de Augusto Matraga como se fosse sua consciência.
Há
linguagem regional aliada ao mais puro “fazer poético” para criar efeitos
inusitados e da mais sublime perfeição. O casamento entre o regional e o
erudito surpreende o leitor, maravilhado e chocado diante do sortilégio verbal,
que, ora prende, ora espanta, criando dificuldades de entendimentos para
muitos.
6.
Análise
da obra
A novela “A Hora e a vez de Augusto Matraga” ocupa um lugar de destaque dentro da
obra “Sagarana”, uma
vez que representa o fechamento em círculo da temática iniciada em “O Burrinho Pedrês” (1º conto do livro) de que um único momento pode valer por
toda uma existência. Sabemos que a força mística de Guimarães Rosa é também
manifestada na presente obra, já que, simbolicamente, o protagonista da ação é
alçado à condição de um Cristo. Nhô Augusto deixa o sítio montado num burrinho.
Este é considerado até mesmo na obra como um elemento sagrado (“... porque mãe Quitéria lhe recordou ser o
jumento um animalzinho assim meio sagrado, muito misturado às passagens da
vida de Jesus”), já que na Bíblia Cristo entrou em Jerusalém montado
num desses animais. A caminhada do protagonista simboliza o homem em busca de
seu destino. E qual seria o destino a ser cumprido? Claro que a salvação de
Matraga só poderia surgir a partir da justiça divina com a negação de seu
próprio ser físico em favor da justiça entre os homens.
Ao salvar inocentes da sanha
vingativa de Joãozinho Bem-Bem, Nhô Augusto encontra também a sua redenção
final, obtida com seu trabalho, sua reza e a fé de que teria sua hora e vez.
Matraga dá a vida, como Cristo, pelos seus semelhantes (“Foi Deus quem mandou esse homem
no jumento, por mór de salvar as famílias da gente!...”).
A força temática desse conto
de que um momento pode valer por toda uma vida, encontra em Nhô Augusto o
momento de êxtase dentro da obra de Guimarães Rosa. A persistência e fé do
protagonista, verdadeiro herói mítico moderno, faz com que a purificação de sua
alma seja completa e sua santificação plena.
A trajetória heroica de
Augusto Matraga que desce do espaço dos poderosos para o dos oprimidos e
marginalizados, recorda-nos o fato de que realmente parece não haver mais
espaço para as grandes epopeias clássicas, para os heróis míticos do passado,
pois o homem moderno traz em si não apenas o herói, mas também o covarde, não
só o bem, mas também o mal e está, como o protagonista comprova, mais próximo
do homem barroco com suas dualidades e ambiguidades do que do clássico. As
verdadeiras epopeias modernas, como podemos considerar “A hora e vez de Augusto Matraga”, são
protagonizadas por homens comuns que se entregam à derrota ou lutam arduamente
através de seus corpos e de suas almas à espera de que surja a sua hora e vez.
7. Personagens
·
Augusto Esteves Matraga/Nhô-Augusto: é o
protagonista. Muda de nome de acordo com as passagens significativas de sua
vida, o que nos permite enxergar nele uma projeção dos herois nítidos. Matraga
se transforma em um homem bom e abnegado, trabalhador e rezador, depois de ter
sido mal, mulherengo, cruel e violento. Seu comportamento desregrado leva-o a
perder a fortuna, a mulher e a filha, tendo quase perdido a vida. Depois de uma
surra levada pelos capangas do Major Consilva, Matraga sentiu-se renascer outro
homem. Foi obrigado a esconder-se dos inimigos num sítio com um casal de pretos
velhos que o salvou. Terminou sua trajetória morto, depois de matar o famoso
chefe de jagunços Joãozinho Bem-Bem para salvar uma família inocente. Ele só
recebe o nome de “Matraga” somente no final, ao morrer. Em vida, ou seja, em
todo o conto, ele só é chamado de Nhô-Augusto, que quer dizer o maior, o
primeiro entre todos, ou Nhô-Augusto Esteves. O apelido “Matraga” não consta de
seu nome próprio. Trata-se de um epíteto que surge com a lenda, depois de sua
morte.
·
Joãozinho Bem-Bem: famoso chefe de jagunços;
home temido e destemido no sertão. Faz justiça com as próprias mãos e armas,
defendendo seus aliados e eliminando seus inimigos. Pressente em Nhô-Augusto
uma força oculta que os aproxima. Ele é mais ambíguo que Matraga: pois, sendo o
mais temido dos valentões, usava lenço azul no chapéu de couro; tinha sorriso
bonito e mansinho de moça. Ao morrer, fez questão de fazer as pazes com o seu
matador, Augusto Matraga, pois vira nele um homem superior a si. A um homem
assim não hesitava em entregar a própria vida. Matraga sentia da mesma forma:
matou o outro, mas sentiria o mesmo prazer em morrer em suas mãos. Seu nome, Joãozinho
Bem-Bem, pode indicar o seu propósito de impor justiça no sertão, pois ele
julgava que só matava em nome da paz. Por outro lado, ele não se separava de um
bandido chamado Flosino Capeta. Isso pode significar que, além do bem, trazia
consigo o mal.
·
Quim Recadeiro: empregado de Augusto Matraga,
tendo a função, como o próprio nome diz de levar recados. Entretando, quando
patrão é morto, vai em busca de justiça e acaba sendo assassinado pelos
capangas do Major Consilva.
·
Dona Dionóra: mulher
de Nhô Augusto. Acabou não aguentando mais o descaso e as judiações do marido, fugindo
com Ovídio, levando consigo sua filha Mimita.
·
Mimita: filha de Nhô Augusto. Percebe ainda
menina, que o pai não gosta dela e da mãe. Acaba se tomando prostituta.
·
Major Consilva: Era
inimigo de Nhô Augusto, tendo também sido inimigo do avô do protagonista. Homem
mau e rico, tem todo o poder depois da suposta morte de Nhô Augusto.
·
Tião da Thereza: Conterrâneo
de Nhô Augusto. Encontra-o no povoado do Tombador e coloca-o a par dos acontecimentos
posteriores à sua suposta morte.
·
Coronel Afonsão Esteves: pai de Augusto
Matraga.
·
Ovídio Moura: homem com quem a mulher de
Augusto Matraga, D. Diónora, foge levando consigo sua filha, Mimita.
·
Tomázia (“Sariema”) e Angélica: prostitutas. São
leiloadas no início de uma festa popular e Matraga ganha Sariema porque era
temido. Quando ela tira a roupa, desiste de ficar com ela por considera-la
feia.
·
Mãe Quitéria: preta que socorre Augusto
Matraga depois dele ter sido espancado e dado como morto pelos capangas do
Major Consilva.
·
Pai Serapião: preto, esposo de Mãe Quitéria
que acolhe Augusto Matraga.
·
Padre: é chamado pelo casal de
velhos para abençoar Matraga e diz para ele: “sua hora chegará”. Matraga repete
essa frase até o final do livro, todas as vezes que se lembrava das injurias
que sofreu.
·
Juruminho: “caboclo franzino, vivo no menor
movimento, ágil até no manejo do garfo”, é um dos integrantes do bando de
Joãozinho Bem-Bem.
·
Teófilo Sussuarana: integrante do bando de
Joãozinho Bem-Bem.
·
Nicolau Cardoso: amigo de Joãozinho Bem-Bem.
·
Franquilim de Albuquerque: amigo de Joãozinho
Bem-Bem.
·
Tobias da Venda: morador da vila do Tombador,
onde Augusto Matraga faz penitência.
·
Flosino Capeta: bandido companheiro de
Joãozinho Bem-Bem.
·
Epifânio: “mulato enorme, de musculatura
embatumada, de bicipitalidade maciça”, é um dos integrantes do bando de
Joãozinho Bem-Bem.
·
Zeferino: “multiplicava as sílabas, com
esforço, e, como tartamudo teimoso, jogava, a cada sílaba, a cabeça para trás”
(gago), é um dos integrantes do bando de Joãozinho Bem-Bem.
·
Rodolpho Merêncio: morador das redondezas da
vila do Tombador que oferece um jegue à Augusto Matraga assim que este decide
partir.
·
Tim Tatu tá-te-vendo: “desertor do Exército e
de três milícias estaduais”, é um dos integrantes do bando de Joãozinho
Bem-Bem.
·
Romualdo: outro morador de Tombador que
precisou de ajuda de Augusto Matraga para tirar uma égua do atoleiro.
8.
Importância
de Matraga
No conjunto da obra de
Guimarães Rosa, “Matraga” desempenha papel fundamental, tanto por razões
temáticas quanto por questões formais. Do ponto de vista temático, atribui
dimensões metafísicas ao motivo da bandidagem, através do qual se investiga o
conceito do bem e do mal, de Deus e do diabo, da guerra e da paz, do amor e do
ódio. Essas preocupações seriam retomadas, ampliadas e aprofundadas mais tarde
em “Grande Sertão: Veredas” (1956), a obra capital do autor. Formalmente,
“Matraga” representa o primeiro exercício realmente genial do autor com os
dispositivos clássicos da narrativa tradicional, com princípio, meio e fim. O
conto restaura a efabulação romanesca e um certo formalismo linguístico
abandonados pelos modernistas da primeira e da segunda fase. Além do suspense
bem organizado, o enredo apresenta final surpreendente e compatível com a
psicologia das personagens. A linguagem do narrador aproxima-se do universo
moral do protagonista, criando perfeita harmonia entre os discursos de um e de
outro.
Enfim, a estória decorre
muito naturalmente do temperamento de Matraga, o qual se vincula de forma
poderosa com a paisagem e suas transformações. O próprio Guimarães Rosa
preferia esse texto aos demais de “Sagarana”. Num depoimento sobre os contos do
volume, escreveu o seguinte acerca de “Matraga”:
“História mais séria, de certo modo síntese e chave de todas as outras,
não falarei sobre seu conteúdo. Quanto à forma, representa para mim vitória
íntima, pois, desde o começo do livro, o seu estilo era o que procurava
descobrir.”
“Matraga” é um homem
dominado pelo instinto guerreiro e não pelo misticismo. Sua essência é de
guerreiro, num período em que a guerra não se justifica mais como prática
corrente entre os homens, como ocorria nos tempos heroicos da Ilíada ou da
Idade Média. Não obstante, há reminiscências desse mundo no sertão mineiro,
representadas pelos cavaleiros itinerantes do bando de Joãozinho Bem-Bem, com
os quais Matraga se identifica mesmo estando no apogeu de sua ascese em busca
da quietude, da bondade, da contemplação e de Deus.
A guerra e a ação atraíam
Matraga de forma incontrolável. Por isso, entrega-se a elas, sob o pretexto de
que, ao liquidar um bando inteiro, estava praticando o bem. Preferia sempre a
multidão dos homens, em que pudesse demonstrar a sua superioridade masculina.
Por isso, sentiu-se irresistivelmente atraído pelo jagunço Joãozinho Bem-Bem.
Perto dele, estava sempre ao lado da força bruta, do poder essencialmente
masculino, que se sobrepunha a todas as outras formas de poder. Matraga era,
enfim, o tipo de valentão que apalpava os braços fortes de um guerreiro e
admirava a envergadura das costas de outro.
9.
Tonalidade
épica
“A hora e vez de Augusto
Matraga” é, essencialmente, um texto épico, no sentido de explorar o universo guerreiro
do sertão, a lado de uma vertente mística, também própria desse espaço
cultural. Como em todo texto épico, há nesse conto, descrições fortes da
paisagem, com a participação dos bichos, dos pássaros e das plantas. Outro
componente emblemático das epopeias é o desfile dos guerreiros, presente em
todas as grandes realizações do gênero épico, desde Ilíada até Os Lusíadas. A chegada do bando de
Joãozinho Bem-Bem no arraial do Tombador organiza-se dentro dos padrões das
paradas heroicas, sendo talvez a passagem mais empolgante do conto:
“O bando desfilou em formação espaçada, o chefe no meio. E o chefe – o
mais forte e mais alto de todos, com um lenço azul enrolado no chapéu de couro,
com dentes brancos limados em acume, de olhar dominador e tosse rosnada, mas
sorriso bonito e mansinho de moça – era o homem mais afamado dos dois sertões
do rio: célebre Jequitinhonha a Serra das Araras, da beira dpo Jequitaí à barra
do Verde Grande, do Rio Gavião até nos montes claros, de Carinhanha até
Paracatu; maior do que Antônio Dó ou Indalécio; o arranca-toco, o treme-terra,
o come-brasa, o pega-à-unha, o fecha-treta, o tira-prosa, o parte-ferro, o
rompe-racha, o rompe-e-arrasa: Seu Joãozinho Bem-Bem.”
10.
Oralidade
estilizada
Como todos os textos
Guimarães Rosa, “A hora e vez de Augusto Matraga” pode ser entendido como
expressão do regionalismo modernista, desde que se entenda essa denominação num
sentido especial e aberto. Não há dúvida de que o conto focaliza aspectos específicos
do interior mineiro: fala, fauna, flora, geografia, tradições e matrizes
culturais, como o banditismo e o misticismo. Mas a narrativa supera o pitoresco
local desses aspectos e apresenta uma situação de caráter universal, capaz de
interessar e comover qualquer pessoa de qualquer país. Esse tipo de literatura,
já mencionada anteriormente, é chamado de regionalismo univesalizante.
Um dos traços mais ricos do
regionalismo de Guimarães consiste na invenção linguística de seus textos. Ele
é um verdadeiro poeta da prosa, no sentido de explorar a sensorialidade
plurissignificativa dos vocábulos, ampliando ao máximo sua carga emotiva e seu
poder de sugestão. Isso pode ser observado na incorporação da fala sertaneja ao
texto literário, depois de devidamente estilizada pela imaginação do escritor.
11.
Metalinguagem,
oralidade e humor
De modo geral, a literatura
romântica é fantasista, apresenta ações inverossímeis, como, por exemplo,
aquela em que Peri arranca uma palmeira do solo apenas com a força dos braços.
Evidentemente, trata-se de uma tarefa impossível, mas o narrador de “O Guarani”
esforça-se por convencer o leitor de veracidade do fato, dando explicações para
que o leitor admita a monumentalidade da ação. Ao contrário dos romances de
aventura de José de Alencar, “A hora e vez de Augusto Matraga” é uma narrativa
que se apresenta como absolutamente verossímil, cheia de conexões com a
realidade, apesar de ser também meio fantástica e dominada por uma forte
atmosfera simbólica. Mesmo admitindo os símbolos e alegorias do texto, a
impressão que permanece é a da vida como ela é.
Não obstante, há lances metalinguísticos em que o narrador procura
desmistificar a impressão de verdade, fazendo questão de ressaltar a
ficcionalidade do texto, como se observa na seguinte passagem:
“E assim se passaram pelo menos seis ou seis anos e meio, direitinho
deste jeito, sem tirar nem pôr, sem mentira nenhuma, porque esta aqui é uma
estória inventada, e não é um caso acontecido, não senhor.”
Esta declaração em favor da
ficção num texto de tamanho poder realista acaba produzindo efeito humorístico,
traço importante no estilo do conto. Há diversas passagens humorísticas na
novela e todas decorrem da imitação da linguagem falada, isto é, da oralidade
expressiva, como se observa também nesse período: “E tudo foi bem assim, porque tinha de ser, já que assim foi.”
12.
Síntese
“A hora e a vez de Augusto Matraga” configura-se como uma
verdadeira saga do homem na travessia por este mundo. Matraga é, de um modo
mais amplo, o homem no sentido universal. Sua trajetória recria a passagem
evolutiva em busca do aprendizado do viver e da ascensão espiritual em
plenitude. Seu objetivo será ter sua hora e vez de entrar no céu, "mesmo que seja a
porrete". É uma história de redenção e espiritualidade, uma história
de conversão. Ao longo do seu enredo o protagonista, Augusto Matraga, passa do
mal ao bem, da perdição à salvação.
Augusto Matraga, foi criado
por uma avó, que o queria padre. No entanto, de herança de pai covarde e tio
criminoso, enveredou para o mal. A narrativa inicia-se em meio a uma festa de
santo, em que, num leilão, Matraga arrebata por 50.000 réis uma prostituta,
desagradando um sertanejo rude, grosseiro que estava interessado por ela.
Matraga nem chega a usá-la, alegando que era muito feia. Ele, de fato era
pessoa rude, não civilizada. Além de bandido e violento, tratava com pouco caso
sua esposa, Dionóra, e sua filha, Mimita. Só queria saber de jogo, caçada e
mulheres de vida fácil. No entanto, sua sorte mudou. Sua esposa o abandona,
passando a viver, com a filha, em companhia de um homem chamado Ovídio. Matraga
não pôde vingar a ofensa, pois recebeu a notícia de que seus capangas, com
exceção de Quim Recadeiro, também o abandonaram, passando para o lado do Major
Consilva. Augusto vai tomar satisfações pela afronta, sem perceber que o
destino virou-se contra ele: não tem mais apoio político, está cheio de dívidas
e suas terras estão hipotecadas. Como o próprio narrador comenta, não havia se
tocado de que era momento de parar umas rodadas, deixar de jogar, pois o azar
havia chegado.
Ao chegar à fazenda do
Major, é cercado pelos capangas do vilão, alguns ex-subordinados de Matraga.
Então é espancado, marcado por ferro em brasa e, antes de sofrer o pior,
atira-se de um altíssimo barranco. Para seus inimigos, estava morto. Mas é
resgatado e cuidado. Ficou dias inconsciente. Voltou a si, e conhecendo sua
situação, desejou a morte.
Com o tempo, Matraga volta a
ter paixão pela vida. Os meses que passa se recuperando das feridas e fraturas
é o tempo suficiente para se arrependa dos pecados e abrace ao cristianismo. No
seu jeito rude, fica até cômica a convicção em afirmar que vai para o Céu, nem
que seja a porrete. Começa sua fase de penitências. Vai com os velhinhos a uma
propriedade sua perdida e distante. Mostra-se trabalhador, misto de louco e
santo no olhar do povo. Vive dessa forma por quase sete anos. Um dia, sofreu
uma dura tentação. Um antigo conhecido passa por lá e surpreende-se ao
descobrir Matraga, ainda mais, mudado. Traz notícias muito inconvenientes.
Dionóra estava para se casar com Ovídio, crente de que estava viúva. Major
Consilva apoderou-se das terras do protagonista. Quim, frouxo e atrapalhado,
havia sido o único a se levantar em defesa do patrão, mas fora morto no momento
em que, tomado de fúria, entrara nas terras do Major com a intenção de
vingança. Mimita, sua filha, se tornara prostituta. É um momento cruel para
Augusto. Deus o havia abandonado? Merecia mesmo o Céu? Mas, como o bíblico Jó,
resiste bravamente à tentação de buscar vingança. Não percebe: já estava salvo.
E que vem o período de chuvas, que, não por coincidência, é o momento em que
Matraga acaba por sentir como se tivesse tirado um peso das costas. As águas,
opondo-se ao pó de outras épocas, simbolizam o batismo, a sublimação, a
elevação.
É então que surge o bando de
Joãozinho Bem-Bem, homem da mesma estirpe do antigo Augusto Matraga. Suas
intenções provavelmente eram malévolas naquela região, mas o amor e a dedicação
com que o protagonista o recebe o desarma. O bandido intui o poder bélico de
Matraga, por isso o convida a fazer parte da empreitada. É uma forte tentação:
o herói sente saudade do poder de desmando que possuía. Imagina até a
possibilidade de vingar a morte de Quim. Mas resistiu a mais essa tentação.
Estava evoluindo a passos largos. Joãozinho Bem-Bem parte, deixando Matraga,
mas levando uma afeição enorme por ele.
Dias depois, enquanto
Augusto trabalhava, presenciou uma belíssima explosão de pássaros voando. Sua
intuição lhe diz algo maravilhoso, que o faz pensar o dia inteiro. Até que toma
uma resolução: decide partir. Faz sua viagem em um jumento, animal carregado de
simbologia cristã, pois havia carregado Maria às vésperas do nascimento de
Cristo. Carregara, pois, o salvador. Matraga viaja muitos dias, até chegar ao
arraial do Rala-Coco, que estava em polvorosa. O bando de Joãozinho Bem-Bem lá
estava, prestes a realizar um crime hediondo. Um dos capangas do facínora o
havia abandonado, ação que fora considerada traição. Joãozinho resolve se
vingar em cima da família deste, querendo assassiná-la. No momento em que
Augusto havia chegado, o pai do fugitivo tinha aparecido e pedido clemência
pela vida de inocentes. A fúria do criminoso parecia não ter limite, pois já
estava prestes a se derramar sobre o idoso. É nesse instante que Augusto
Matraga intercede. Mesmo havendo um enorme apreço entre Joãozinho e o herói, os
dois começam a se desentender. O bandido está tomado de um maligno espírito
vingativo. Matraga defende a bondade divina, sempre pedindo para seu opositor
evitar uma tragédia injusta, sempre clamando pelo nome de Deus. O inevitável
acontece. Há uma terrível luta. Tiros de todos os lados. Os dois saem feridos,
mas Matraga, sempre invocando o nome do Senhor e pedindo para seu amigo se
arrepender dos pecados, acaba vencendo, rasgando a barriga de Joãozinho, que
morre segurando nas mãos suas entranhas. Augusto Matraga estava morrendo, mas
contente.
Aclamado como santo e
salvador entre o povo que tenta socorrê-lo, ainda tem tempo para fazer com que
respeitassem o cadáver de Joãozinho Bem-Bem, mandando que o enterrassem
dignamente. Ainda teve tempo, além disso, de abençoar sua filha perdida. Morre,
porque havia chegado a sua hora e a sua vez. Havia realizado sua missão,
cumprido os planos de um misterioso desígnio divino. Estava salvo. Ia para o
Céu.
Texto organizado por Alyson Carvalho.
Só queria agradecer por todo esse trabalho incrível que vocês fazem. Admiro muito vocês!
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