domingo, 5 de julho de 2015

CONTO “A HORA E VEZ DE AUGUSTO MATRAGA” – GUIMARÃES ROSA


Observação: “A hora e vez de Augusto Matraga” é um conto longo, por isso pode ser considerado uma novela. A crítica oscila entre essas duas designações, usando-as indiferentemente. Talvez seja conveniente aplicar ao texto a designação de estória, termo consagrado por Guimarães Rosa para descrever qualquer narrativa em prosa.

      1.      Introdução

O conto “A hora e a vez de Augusto Matraga” faz parte do livro “Sagarana” que é uma coletânea de contos, nove no total. Todos os textos apresentam a tendência de Guimarães Rosa à pesquisa permanente da linguagem regional, mantendo-se ligados ao instrumentalismo. O livro principia por uma epígrafe, extraída de uma quadra de desafio, que sintetiza os elementos centrais da obra: Minas Gerais, sertão, bois, vaqueiros e jagunços, o bem e o mal:
“Lá em cima daquela serra,
passa boi, passa boiada,
passa gente ruim e boa,
passa a minha namorada.”

Em sua primeira versão, os contos de “Sagarana” foram escritos em 1937 e submetidos a um concurso literário (o Prêmio Graça Aranha, instituído pela Editora José Olympio), mas não obtiveram premiação, apesar de Graciliano Ramos, membro do júri, ter advogado para o livro de Rosa (sob o pseudônimo de Viator) o primeiro lugar (ficou em segundo, perdendo para “Maria Perigosa”, de Luís Jardim).
Com o tempo, Guimarães Rosa foi “enxugando” o livro, até a versão que veio à luz em 1946, reduzindo-a das 500 páginas originais para cerca de 300, na versão definitiva.
O título do livro, “Sagarana”, remete-nos a um dos processos de invenção de palavras mais característicos de Rosa – o hibridismo. “Saga” é radical de origem germânica e significa “canto heroico”, “lenda”; “rana” vem da língua indígena e quer dizer “à maneira de”, “espécie de” ou “que exprime semelhança”. Assim, “Sagarana” significa algo como “próximo a uma saga”
As histórias desembocam sempre numa alegoria e o desenrolar dos fatos prende-se a um sentido ou moral, à maneira das fábulas. As epígrafes que encabeçam cada conto condensam sugestivamente a narrativa e são tomadas da tradição mineira, dos provérbios e cantigas do sertão. O autor combina e recombina habilmente as informações do meio, confundindo lugares e paisagens, mesclando o real, o imaginário e o lendário em sua obra. 
      2.      Autor

Guimarães Rosa situa-se na 3ª fase do Modernismo brasileiro, chamada Neomodernismo ou Geração de 45. Ao lado de Clarice Lispector, ele rompeu com os esquemas narrativos dos anos 30 e instaurou um novo processo ficcional, baseado na estilização inventiva de dados regionais e na constante pesquisa do instrumento que lhe serve de base, a linguagem. Por essas razões, Guimarães Rosa pode ser considerado um instrumentalista. Da mesma geração, o seu correspondente formal e temático na poesia é João Cabral de Melo Neto.
Os contos e romances escritos por Guimarães Rosa ambientam-se quase todos no chamado sertão brasileiro e ao observá-lo, ele sobrepõe uma forte camada de matéria pensante e problematizadora. A sua obra destaca-se, sobretudo, pelas inovações de linguagem, sendo marcada pela influência de falares populares e regionais que, somados à erudição do autor, permitiu a criação de inúmeros vocábulos a partir de arcaísmos e palavras populares, invenções e intervenções semânticas e sintáticas. Por conta disso, tornou-se o escritor de maior importância e prestígio da literatura brasileira no século XX.
Realismo mágico, regionalismo, liberdade de invenções linguísticas e neologismos são algumas das características fundamentais da literatura de Guimarães Rosa, mas não as suficientes para explicar seu sucesso. Guimarães Rosa prova o quão importante é ter a linguagem a serviço da temática e vice-versa, uma potencializando a outra. Nesse sentido, o escritor mineiro inaugura uma metamorfose no regionalismo brasileiro que o traria de novo ao centro da ficção brasileira.
Nessa perspectiva, as estórias de Guimarães expressam uma visão metafísica da existência, porque todas, de alguma forma, comportam a crença num bem verdadeiro e superior. Com efeito, no pensamento geral das estórias de “Sagarana” há uma constante investigação filosófica, a qual não raro, se converte em contemplação mística do universo.
Guimarães Rosa também é incluído no cânone internacional a partir do boom da literatura latino-americana pós-1950. O romance entrara em decadência nos Estados Unidos (onde à época era vitrine da própria arte literária, concorrendo apenas com o cinema), especialmente após a morte de Céline (1951), Thomas Mann (1955), Albert Camus (1960), Hemingway (1961), Faulkner (1962). E, a partir de “Cem anos de solidão” (1967), do colombiano Gabriel García Márquez, a ficção latino-americana torna-se a representação de uma vitalidade artística e de uma capacidade de invenção ficcional que pareciam, naquele momento, perdidas para sempre. São desse período os imortais Mario Vargas Llosa (Peru), Carlos Fuentes (México), Julio Cortázar (Argentina), Juan Rulfo (México), Alejo Carpentier (Cuba) e Angel Ramá (Uruguai).
      3.      Estilo: regionalismo universalizante e invenção linguística

A obra “Sagarana”, na qual se encontra o conto “A hora e a vez de Augusto Matraga”, não apenas está inserida nas perspectivas instrumentalistas (linguagem como instrumento constante de pesquisas), bem como é uma das obras iniciadoras da terceira fase modernista. O conto em questão aponta para a tendência criada por Guimarães Rosa do regionalismo universalizante, em virtude de sua capacidade de refletir sobre tópicas consagradas pela tradição da literatura mundial, a partir do pitoresco regional.
“Sagarana” é um livro absolutamente novo com relação ao passado literário brasileiro e uma obra meio envelhecida com relação aos outros livros subsequentes de Guimarães Rosa. Por ocasião de sua publicação, Álvaro Lins chamou atenção para a organicidade com que o documentário regional se fundia com a ficção do livro.
Algumas minúcias, como vários nomes para determinada personagem, são comuníssimas nos textos do livro. Tais requintes formais decorrem da estilização da linguagem oral, que, às vezes, gera enunciados dificilmente admissíveis pela lógica gramatical, mas que se entendem perfeitamente como vivacidades da expressão oral.
Guimarães Rosa cria neologismos em “Sagarana”, utilizando-se de palavras formadas por derivações sufixal, prefixal, parassintética e também por abreviação, composição aglutinada e composição justaposta. A obra é repleta de neologismos que se sobressaem em composições e derivações novas, além “de novos tipos de construção frasal”, ditos "neologismos sintáticos”, segundo Mattoso Câmara.
A importância desse grande autor na literatura brasileira advém justamente dessa sua invenção linguística. Desde o início, notou-se em sua ficção uma radical contestação da linguagem convencional e o propósito de revolucionar a expressão literária no Brasil. Sua invenção e revolução abrangem o nível semântico (significado), o sintático (combinação) e o fonológico (som). Quer dizer: cria palavras, descobre associações imprevistas entre elas e reproduz ruídos da natureza ainda não registrados antes dele. E isso tudo se deve ao fato de que a matéria de sua ficção é falada pelos jagunços ou vaqueiros do sertão mineiro. Rosa escreve. Mas quem fala são eles, os narradores. Por isso seus textos se acham carregados de modismos e singularidades de um falar que soa ao homem urbano como poesia em prosa ou prosa poética.
Algumas figuras de linguagem, tais como metáforas, anacoluto e silepse têm também grande destaque. Além disso, o autor faz uso de recursos melopeicos, que são únicos em sua obra. Como disse Guimarães Rosa, “as palavras têm canto e plumagem” (Borba, 1946), e, por isso mesmo, cada uma delas leva a significados diversos, ainda que essa diversidade possa ser muito sutil e só apreendida em um exercício de interpretação. Com efeito, Guimarães apela para os aspectos auditivos (“canto”) e visuais (“plumagem”), fazendo um verdadeiro arranjo sonoro com as palavras.
      4.      Tempo e espaço

O tempo da narrativa está mais voltado ao psicológico, ou seja, indeterminado. O espaço é Minas Gerais, mais especificadamente o norte de Minas Gerais, destacando-se nomes de vilarejos (Rala-Coco, Murici, Pindaíbas, Tombador) e lugares do sertão (rios, serras etc).
Em “Sagarana”, a paisagem assume uma relevância decisiva, porque o autor vê o mundo dos homens como uma espécie de extensão do mundo natural. Na maioria dos contos, os bichos exercem grande importância nas estórias do livro. Por essa razão, não se deve desprezar nenhuma das inúmeras referências feitas a eles.
Há no livro também uma infinidade de paisagens que tem como função impressionar sensorialmente o leitor, isto é, saturá-lo de informação, fornecendo-lhe tantos pormenores quantos são necessários para causar a ilusão da tridimensionalidade do mundo. Tais descrições se fazem acompanhar de movimento e energia. Baseia-se no processo da enumeração exaustiva, às vezes tão longas e reiterativas que parecem esgotar todos os ângulos da realidade inventada.
      5.      Foco narrativo

O conto é narrado em terceira pessoa. O narrador é onisciente, penetrando nos pensamentos de Augusto Matraga como se fosse sua consciência.
Há linguagem regional aliada ao mais puro “fazer poético” para criar efeitos inusitados e da mais sublime perfeição. O casamento entre o regional e o erudito surpreende o leitor, maravilhado e chocado diante do sortilégio verbal, que, ora prende, ora espanta, criando dificuldades de entendimentos para muitos.  
      6.      Análise da obra

A novela “A Hora e a vez de Augusto Matraga” ocupa um lugar de destaque dentro da obra Sagarana”, uma vez que representa o fechamento em círculo da temática iniciada em “O Burrinho Pedrês” (1º conto do livro) de que um único momento pode valer por toda uma existência. Sabemos que a força mística de Guimarães Rosa é também manifestada na presente obra, já que, simbolicamente, o protagonista da ação é alçado à condição de um Cristo. Nhô Augusto deixa o sítio montado num burrinho. Este é considerado até mesmo na obra como um elemento sagrado (“... porque mãe Quitéria lhe recordou ser o jumento um animalzinho assim meio sagrado, muito misturado às pas­sagens da vida de Jesus”), já que na Bíblia Cristo entrou em Jerusalém montado num desses animais. A caminhada do protagonista simboliza o homem em busca de seu destino. E qual seria o destino a ser cumprido? Claro que a salvação de Matraga só poderia surgir a partir da justiça divina com a negação de seu próprio ser físico em favor da justiça entre os homens.
Ao salvar inocentes da sanha vingativa de Joãozinho Bem-Bem, Nhô Augusto encontra também a sua redenção final, obtida com seu trabalho, sua reza e a fé de que teria sua hora e vez. Matraga dá a vida, como Cristo, pelos seus semelhantes (“Foi Deus quem mandou esse homem no jumento, por mór de salvar as famílias da gente!...”).
A força temática desse conto de que um momento pode valer por toda uma vida, encontra em Nhô Augusto o momento de êxtase dentro da obra de Guimarães Rosa. A persistência e fé do protagonista, verdadeiro herói mítico moderno, faz com que a purificação de sua alma seja completa e sua santificação plena.
A trajetória heroica de Augusto Matraga que desce do espaço dos poderosos para o dos oprimidos e marginalizados, recorda-nos o fato de que realmente parece não haver mais espaço para as grandes epopeias clássicas, para os heróis míticos do passado, pois o homem moderno traz em si não apenas o herói, mas também o covarde, não só o bem, mas também o mal e está, como o protagonista comprova, mais próximo do homem barroco com suas dualidades e ambiguidades do que do clássico. As verdadeiras epopeias modernas, como podemos considerar “A hora e vez de Augusto Matraga”, são protagonizadas por homens comuns que se entregam à derrota ou lutam arduamente através de seus corpos e de suas almas à espera de que surja a sua hora e vez.

7.      Personagens

·        Augusto Esteves Matraga/Nhô-Augusto: é o protagonista. Muda de nome de acordo com as passagens significativas de sua vida, o que nos permite enxergar nele uma projeção dos herois nítidos. Matraga se transforma em um homem bom e abnegado, trabalhador e rezador, depois de ter sido mal, mulherengo, cruel e violento. Seu comportamento desregrado leva-o a perder a fortuna, a mulher e a filha, tendo quase perdido a vida. Depois de uma surra levada pelos capangas do Major Consilva, Matraga sentiu-se renascer outro homem. Foi obrigado a esconder-se dos inimigos num sítio com um casal de pretos velhos que o salvou. Terminou sua trajetória morto, depois de matar o famoso chefe de jagunços Joãozinho Bem-Bem para salvar uma família inocente. Ele só recebe o nome de “Matraga” somente no final, ao morrer. Em vida, ou seja, em todo o conto, ele só é chamado de Nhô-Augusto, que quer dizer o maior, o primeiro entre todos, ou Nhô-Augusto Esteves. O apelido “Matraga” não consta de seu nome próprio. Trata-se de um epíteto que surge com a lenda, depois de sua morte.
·        Joãozinho Bem-Bem: famoso chefe de jagunços; home temido e destemido no sertão. Faz justiça com as próprias mãos e armas, defendendo seus aliados e eliminando seus inimigos. Pressente em Nhô-Augusto uma força oculta que os aproxima. Ele é mais ambíguo que Matraga: pois, sendo o mais temido dos valentões, usava lenço azul no chapéu de couro; tinha sorriso bonito e mansinho de moça. Ao morrer, fez questão de fazer as pazes com o seu matador, Augusto Matraga, pois vira nele um homem superior a si. A um homem assim não hesitava em entregar a própria vida. Matraga sentia da mesma forma: matou o outro, mas sentiria o mesmo prazer em morrer em suas mãos. Seu nome, Joãozinho Bem-Bem, pode indicar o seu propósito de impor justiça no sertão, pois ele julgava que só matava em nome da paz. Por outro lado, ele não se separava de um bandido chamado Flosino Capeta. Isso pode significar que, além do bem, trazia consigo o mal.
·        Quim Recadeiro: empregado de Augusto Matraga, tendo a função, como o próprio nome diz de levar recados. Entretando, quando patrão é morto, vai em busca de justiça e acaba sendo assassinado pelos capangas do Major Consilva.
·        Dona Dionóra: mulher de Nhô Augusto. Acabou não aguentando mais o descaso e as judiações do marido, fugindo com Ovídio, levando consigo sua filha Mimita.
·        Mimita: filha de Nhô Augusto. Percebe ainda menina, que o pai não gosta dela e da mãe. Acaba se tomando prostituta.
·        Major Consilva: Era inimigo de Nhô Augusto, tendo também sido inimigo do avô do protagonista. Homem mau e rico, tem todo o poder depois da suposta morte de Nhô Augusto.
·        Tião da Thereza: Conterrâneo de Nhô Augusto. Encontra-o no povoado do Tombador e coloca-o a par dos acontecimentos posteriores à sua suposta morte.
·        Coronel Afonsão Esteves: pai de Augusto Matraga.
·        Ovídio Moura: homem com quem a mulher de Augusto Matraga, D. Diónora, foge levando consigo sua filha, Mimita.
·        Tomázia (“Sariema”) e Angélica: prostitutas. São leiloadas no início de uma festa popular e Matraga ganha Sariema porque era temido. Quando ela tira a roupa, desiste de ficar com ela por considera-la feia.
·        Mãe Quitéria: preta que socorre Augusto Matraga depois dele ter sido espancado e dado como morto pelos capangas do Major Consilva.
·        Pai Serapião: preto, esposo de Mãe Quitéria que acolhe Augusto Matraga.
·         Padre: é chamado pelo casal de velhos para abençoar Matraga e diz para ele: “sua hora chegará”. Matraga repete essa frase até o final do livro, todas as vezes que se lembrava das injurias que sofreu.
·        Juruminho: “caboclo franzino, vivo no menor movimento, ágil até no manejo do garfo”, é um dos integrantes do bando de Joãozinho Bem-Bem.
·        Teófilo Sussuarana: integrante do bando de Joãozinho Bem-Bem.
·        Nicolau Cardoso: amigo de Joãozinho Bem-Bem.
·        Franquilim de Albuquerque: amigo de Joãozinho Bem-Bem.
·        Tobias da Venda: morador da vila do Tombador, onde Augusto Matraga faz penitência.
·        Flosino Capeta: bandido companheiro de Joãozinho Bem-Bem.
·        Epifânio: “mulato enorme, de musculatura embatumada, de bicipitalidade maciça”, é um dos integrantes do bando de Joãozinho Bem-Bem.
·        Zeferino: “multiplicava as sílabas, com esforço, e, como tartamudo teimoso, jogava, a cada sílaba, a cabeça para trás” (gago), é um dos integrantes do bando de Joãozinho Bem-Bem.
·        Rodolpho Merêncio: morador das redondezas da vila do Tombador que oferece um jegue à Augusto Matraga assim que este decide partir.
·        Tim Tatu tá-te-vendo: “desertor do Exército e de três milícias estaduais”, é um dos integrantes do bando de Joãozinho Bem-Bem.
·        Romualdo: outro morador de Tombador que precisou de ajuda de Augusto Matraga para tirar uma égua do atoleiro.

8.      Importância de Matraga

No conjunto da obra de Guimarães Rosa, “Matraga” desempenha papel fundamental, tanto por razões temáticas quanto por questões formais. Do ponto de vista temático, atribui dimensões metafísicas ao motivo da bandidagem, através do qual se investiga o conceito do bem e do mal, de Deus e do diabo, da guerra e da paz, do amor e do ódio. Essas preocupações seriam retomadas, ampliadas e aprofundadas mais tarde em “Grande Sertão: Veredas” (1956), a obra capital do autor. Formalmente, “Matraga” representa o primeiro exercício realmente genial do autor com os dispositivos clássicos da narrativa tradicional, com princípio, meio e fim. O conto restaura a efabulação romanesca e um certo formalismo linguístico abandonados pelos modernistas da primeira e da segunda fase. Além do suspense bem organizado, o enredo apresenta final surpreendente e compatível com a psicologia das personagens. A linguagem do narrador aproxima-se do universo moral do protagonista, criando perfeita harmonia entre os discursos de um e de outro.
Enfim, a estória decorre muito naturalmente do temperamento de Matraga, o qual se vincula de forma poderosa com a paisagem e suas transformações. O próprio Guimarães Rosa preferia esse texto aos demais de “Sagarana”. Num depoimento sobre os contos do volume, escreveu o seguinte acerca de “Matraga”:
“História mais séria, de certo modo síntese e chave de todas as outras, não falarei sobre seu conteúdo. Quanto à forma, representa para mim vitória íntima, pois, desde o começo do livro, o seu estilo era o que procurava descobrir.”
“Matraga” é um homem dominado pelo instinto guerreiro e não pelo misticismo. Sua essência é de guerreiro, num período em que a guerra não se justifica mais como prática corrente entre os homens, como ocorria nos tempos heroicos da Ilíada ou da Idade Média. Não obstante, há reminiscências desse mundo no sertão mineiro, representadas pelos cavaleiros itinerantes do bando de Joãozinho Bem-Bem, com os quais Matraga se identifica mesmo estando no apogeu de sua ascese em busca da quietude, da bondade, da contemplação e de Deus.
A guerra e a ação atraíam Matraga de forma incontrolável. Por isso, entrega-se a elas, sob o pretexto de que, ao liquidar um bando inteiro, estava praticando o bem. Preferia sempre a multidão dos homens, em que pudesse demonstrar a sua superioridade masculina. Por isso, sentiu-se irresistivelmente atraído pelo jagunço Joãozinho Bem-Bem. Perto dele, estava sempre ao lado da força bruta, do poder essencialmente masculino, que se sobrepunha a todas as outras formas de poder. Matraga era, enfim, o tipo de valentão que apalpava os braços fortes de um guerreiro e admirava a envergadura das costas de outro.

9.      Tonalidade épica

“A hora e vez de Augusto Matraga” é, essencialmente, um texto épico, no sentido de explorar o universo guerreiro do sertão, a lado de uma vertente mística, também própria desse espaço cultural. Como em todo texto épico, há nesse conto, descrições fortes da paisagem, com a participação dos bichos, dos pássaros e das plantas. Outro componente emblemático das epopeias é o desfile dos guerreiros, presente em todas as grandes realizações do gênero épico, desde  Ilíada até Os Lusíadas. A chegada do bando de Joãozinho Bem-Bem no arraial do Tombador organiza-se dentro dos padrões das paradas heroicas, sendo talvez a passagem mais empolgante do conto:
“O bando desfilou em formação espaçada, o chefe no meio. E o chefe – o mais forte e mais alto de todos, com um lenço azul enrolado no chapéu de couro, com dentes brancos limados em acume, de olhar dominador e tosse rosnada, mas sorriso bonito e mansinho de moça – era o homem mais afamado dos dois sertões do rio: célebre Jequitinhonha a Serra das Araras, da beira dpo Jequitaí à barra do Verde Grande, do Rio Gavião até nos montes claros, de Carinhanha até Paracatu; maior do que Antônio Dó ou Indalécio; o arranca-toco, o treme-terra, o come-brasa, o pega-à-unha, o fecha-treta, o tira-prosa, o parte-ferro, o rompe-racha, o rompe-e-arrasa: Seu Joãozinho Bem-Bem.”

10. Oralidade estilizada

Como todos os textos Guimarães Rosa, “A hora e vez de Augusto Matraga” pode ser entendido como expressão do regionalismo modernista, desde que se entenda essa denominação num sentido especial e aberto. Não há dúvida de que o conto focaliza aspectos específicos do interior mineiro: fala, fauna, flora, geografia, tradições e matrizes culturais, como o banditismo e o misticismo. Mas a narrativa supera o pitoresco local desses aspectos e apresenta uma situação de caráter universal, capaz de interessar e comover qualquer pessoa de qualquer país. Esse tipo de literatura, já mencionada anteriormente, é chamado de regionalismo univesalizante.
Um dos traços mais ricos do regionalismo de Guimarães consiste na invenção linguística de seus textos. Ele é um verdadeiro poeta da prosa, no sentido de explorar a sensorialidade plurissignificativa dos vocábulos, ampliando ao máximo sua carga emotiva e seu poder de sugestão. Isso pode ser observado na incorporação da fala sertaneja ao texto literário, depois de devidamente estilizada pela imaginação do escritor.

11. Metalinguagem, oralidade e humor

De modo geral, a literatura romântica é fantasista, apresenta ações inverossímeis, como, por exemplo, aquela em que Peri arranca uma palmeira do solo apenas com a força dos braços. Evidentemente, trata-se de uma tarefa impossível, mas o narrador de “O Guarani” esforça-se por convencer o leitor de veracidade do fato, dando explicações para que o leitor admita a monumentalidade da ação. Ao contrário dos romances de aventura de José de Alencar, “A hora e vez de Augusto Matraga” é uma narrativa que se apresenta como absolutamente verossímil, cheia de conexões com a realidade, apesar de ser também meio fantástica e dominada por uma forte atmosfera simbólica. Mesmo admitindo os símbolos e alegorias do texto, a impressão que permanece é a da vida como ela é.  Não obstante, há lances metalinguísticos em que o narrador procura desmistificar a impressão de verdade, fazendo questão de ressaltar a ficcionalidade do texto, como se observa na seguinte passagem:
“E assim se passaram pelo menos seis ou seis anos e meio, direitinho deste jeito, sem tirar nem pôr, sem mentira nenhuma, porque esta aqui é uma estória inventada, e não é um caso acontecido, não senhor.”
Esta declaração em favor da ficção num texto de tamanho poder realista acaba produzindo efeito humorístico, traço importante no estilo do conto. Há diversas passagens humorísticas na novela e todas decorrem da imitação da linguagem falada, isto é, da oralidade expressiva, como se observa também nesse período: “E tudo foi bem assim, porque tinha de ser, já que assim foi.”

12. Síntese

“A hora e a vez de Augusto Matraga” configura-se como uma verdadeira saga do homem na travessia por este mundo. Matraga é, de um modo mais amplo, o homem no sentido universal. Sua trajetória recria a passagem evolutiva em busca do aprendizado do viver e da ascensão espiritual em plenitude. Seu objetivo será ter sua hora e vez de entrar no céu, "mesmo que seja a porrete". É uma história de redenção e espiritualidade, uma história de conversão. Ao longo do seu enredo o protagonista, Augusto Matraga, passa do mal ao bem, da perdição à salvação.
Augusto Matraga, foi criado por uma avó, que o queria padre. No entanto, de herança de pai covarde e tio criminoso, enveredou para o mal. A narrativa inicia-se em meio a uma festa de santo, em que, num leilão, Matraga arrebata por 50.000 réis uma prostituta, desagradando um sertanejo rude, grosseiro que estava interessado por ela. Matraga nem chega a usá-la, alegando que era muito feia. Ele, de fato era pessoa rude, não civilizada. Além de bandido e violento, tratava com pouco caso sua esposa, Dionóra, e sua filha, Mimita. Só queria saber de jogo, caçada e mulheres de vida fácil. No entanto, sua sorte mudou. Sua esposa o abandona, passando a viver, com a filha, em companhia de um homem chamado Ovídio. Matraga não pôde vingar a ofensa, pois recebeu a notícia de que seus capangas, com exceção de Quim Recadeiro, também o abandonaram, passando para o lado do Major Consilva. Augusto vai tomar satisfações pela afronta, sem perceber que o destino virou-se contra ele: não tem mais apoio político, está cheio de dívidas e suas terras estão hipotecadas. Como o próprio narrador comenta, não havia se tocado de que era momento de parar umas rodadas, deixar de jogar, pois o azar havia chegado.
Ao chegar à fazenda do Major, é cercado pelos capangas do vilão, alguns ex-subordinados de Matraga. Então é espancado, marcado por ferro em brasa e, antes de sofrer o pior, atira-se de um altíssimo barranco. Para seus inimigos, estava morto. Mas é resgatado e cuidado. Ficou dias inconsciente. Voltou a si, e conhecendo sua situação, desejou a morte.
Com o tempo, Matraga volta a ter paixão pela vida. Os meses que passa se recuperando das feridas e fraturas é o tempo suficiente para se arrependa dos pecados e abrace ao cristianismo. No seu jeito rude, fica até cômica a convicção em afirmar que vai para o Céu, nem que seja a porrete. Começa sua fase de penitências. Vai com os velhinhos a uma propriedade sua perdida e distante. Mostra-se trabalhador, misto de louco e santo no olhar do povo. Vive dessa forma por quase sete anos. Um dia, sofreu uma dura tentação. Um antigo conhecido passa por lá e surpreende-se ao descobrir Matraga, ainda mais, mudado. Traz notícias muito inconvenientes. Dionóra estava para se casar com Ovídio, crente de que estava viúva. Major Consilva apoderou-se das terras do protagonista. Quim, frouxo e atrapalhado, havia sido o único a se levantar em defesa do patrão, mas fora morto no momento em que, tomado de fúria, entrara nas terras do Major com a intenção de vingança. Mimita, sua filha, se tornara prostituta. É um momento cruel para Augusto. Deus o havia abandonado? Merecia mesmo o Céu? Mas, como o bíblico Jó, resiste bravamente à tentação de buscar vingança. Não percebe: já estava salvo. E que vem o período de chuvas, que, não por coincidência, é o momento em que Matraga acaba por sentir como se tivesse tirado um peso das costas. As águas, opondo-se ao pó de outras épocas, simbolizam o batismo, a sublimação, a elevação.
É então que surge o bando de Joãozinho Bem-Bem, homem da mesma estirpe do antigo Augusto Matraga. Suas intenções provavelmente eram malévolas naquela região, mas o amor e a dedicação com que o protagonista o recebe o desarma. O bandido intui o poder bélico de Matraga, por isso o convida a fazer parte da empreitada. É uma forte tentação: o herói sente saudade do poder de desmando que possuía. Imagina até a possibilidade de vingar a morte de Quim. Mas resistiu a mais essa tentação. Estava evoluindo a passos largos. Joãozinho Bem-Bem parte, deixando Matraga, mas levando uma afeição enorme por ele.
Dias depois, enquanto Augusto trabalhava, presenciou uma belíssima explosão de pássaros voando. Sua intuição lhe diz algo maravilhoso, que o faz pensar o dia inteiro. Até que toma uma resolução: decide partir. Faz sua viagem em um jumento, animal carregado de simbologia cristã, pois havia carregado Maria às vésperas do nascimento de Cristo. Carregara, pois, o salvador. Matraga viaja muitos dias, até chegar ao arraial do Rala-Coco, que estava em polvorosa. O bando de Joãozinho Bem-Bem lá estava, prestes a realizar um crime hediondo. Um dos capangas do facínora o havia abandonado, ação que fora considerada traição. Joãozinho resolve se vingar em cima da família deste, querendo assassiná-la. No momento em que Augusto havia chegado, o pai do fugitivo tinha aparecido e pedido clemência pela vida de inocentes. A fúria do criminoso parecia não ter limite, pois já estava prestes a se derramar sobre o idoso. É nesse instante que Augusto Matraga intercede. Mesmo havendo um enorme apreço entre Joãozinho e o herói, os dois começam a se desentender. O bandido está tomado de um maligno espírito vingativo. Matraga defende a bondade divina, sempre pedindo para seu opositor evitar uma tragédia injusta, sempre clamando pelo nome de Deus. O inevitável acontece. Há uma terrível luta. Tiros de todos os lados. Os dois saem feridos, mas Matraga, sempre invocando o nome do Senhor e pedindo para seu amigo se arrepender dos pecados, acaba vencendo, rasgando a barriga de Joãozinho, que morre segurando nas mãos suas entranhas. Augusto Matraga estava morrendo, mas contente.
Aclamado como santo e salvador entre o povo que tenta socorrê-lo, ainda tem tempo para fazer com que respeitassem o cadáver de Joãozinho Bem-Bem, mandando que o enterrassem dignamente. Ainda teve tempo, além disso, de abençoar sua filha perdida. Morre, porque havia chegado a sua hora e a sua vez. Havia realizado sua missão, cumprido os planos de um misterioso desígnio divino. Estava salvo. Ia para o Céu.

Texto organizado por Alyson Carvalho.







Um comentário:

  1. Só queria agradecer por todo esse trabalho incrível que vocês fazem. Admiro muito vocês!

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